Machado de Assis no
reino das adaptações

Rafael de Luna Freire

Machado de Assis, plural
Luís Alberto Rocha Melo

Duas vias de acesso a
Machado, e um desvio
Francisco Roberto Papaterra Limongi Mariutti

O Cinema e Machado
Hernani Heffner

Brás Cubas: reflexões
sobre dois planos

Jean-Claude Bernardet


DUAS VIAS DE ACESSO A MACHADO, E UM DESVIO
Francisco Roberto Papaterra Limongi Mariutti

Transformar uma obra literária em roteiro de cinema é uma forma de leitura daquela obra. Considerando as coisas dessa maneira, crítica literária e cinema seriam áreas fronteiriças; o que diz respeito a uma, interessa à outra. Machado de Assis é objeto de ambas: tema de muitas teses e estudos, sua obra tornou-se a origem de várias fitas. Seus contos, crônicas e romances – a poesia e a crítica menos – são matéria do ensino secundário e dos exames vestibulares; os estudantes, por motivos vários, optam por ler os famigerados resumos, que podem ser encontrados em suas apostilas ou na internet, em vez de tentar enfrentar o original. Proponho para este artigo uma análise de dois desses resumos, seguida de um brevíssimo balanço da fortuna crítica do autor de Memorial de Aires e relacioná-los a alguns filmes da presente mostra.

1. Um desvio

O primeiro problema oferecido pelo autor em pauta é a densidade mesmo de sua obra, no sentido literal: um peso, uma espessura, algo que não se deixa penetrar por uma 'leitura fluviante, flutual' (1), como se lê jornal esperando a hora no dentista; mesmo sendo o ficcionista brasileiro mais lido nas escolas, não são raros os alunos que demonstram incompreensão absoluta de um romance ou de um conto do autor de Dom Casmurro. Para exemplificar essa dificuldade, reproduzo um pequeno resumo – feito por quem?, um estudante de Letras?, um professor de literatura?, um jornalista? – de Quincas Borba que encontrei na internet, uma forma de acesso aos textos literários largamente utilizada:

"O filósofo Quincas Borba, antes de morrer, deixa toda sua fortuna para seu amigo e discípulo Rubião. Nada habituado a tão alto nível de vida, o novo rico vai logo se apaixonando pela bela e desconhecida Sofia. O que ele nem desconfia é que ela é casada com o dominador Cristiano Palha. Juntos, marido e mulher fazem o possível para atrapalhar os negócios do despreparado Rubião. Quando descobre que Sofia nunca o amou, ele larga tudo e volta para sua pequena cidade. Acompanhado apenas por suas fantasias e por Quincas Borba, seu cachorro de estimação." (2)

Primeiro, chamar um tipo pancada como Quincas Borba de filósofo, sem aspas, sem nenhuma ressalva é, no mínimo, uma temeridade. Claro que se trata de uma ironia de Machado, que também apresenta a personagem dessa mesma maneira, mas também apresenta os elementos necessários para que o leitor desconfie dessa qualificação. A associação entre filosofia e loucura faz parte de certa tradição intelectual, que remonta a Shakespeare e a Erasmo, o primeiro citado, explicitamente, no capítulo CIX de Quincas Borba, em que se procura a compreensão de um sonho de Rubião; o espantoso é que Machado, na época em que eram formulados os princípios da psicanálise, concentra em poucas linhas a menção a um dos autores mais citados por Freud e seu tema central, a interpretação dos sonhos; nada mais, nada menos que uma das clarividências incríveis do Bruxo do Cosme Velho.

Logo a seguir, chama a atenção a paixão pela 'desconhecida' Sofia, de cujo estado civil Rubião 'nem desconfia'. Ora, o mineiro sempre soube que Sofia era casada, uma vez que foi apresentado a ela pelo próprio marido, numa viagem de trem, capítulo XXI do romance. Ainda, reduzir a relação entre o casal e Rubião – extremamente complexa, diga-se – a uma sabotagem dos negócios deste último é uma distorção incrível: os homens desse singular triângulo são sócios numa empresa comercial, sociedade em que Rubião imagina incluir – a título de objeto, não de sócia – Sofia, a quem propõe "comprar-lhe não só a alma, mas a alma e o corpo..." – capítulo XL, últimas linhas. Empresa amorosa = empresa comercial, não é essa a lógica da sociedade sob o Capital, que Rubião encontra na Corte do Rio de Janeiro? Nesse sentido, agir – e fantasiar, para usar uma palavra retirada do resumo – estritamente de acordo com as regras dessa sociedade é sinal de lucidez ou loucura?

O trecho iniciado por quando descobre... merece observações: construir o período por subordinação dá a entender que Rubião voltou a Barbacena por vontade própria; ora, trata-se antes de uma expulsão do Rio de Janeiro e menos de uma viagem de 'volta para sua pequena cidade', uma ação induzida por Palha – depois de tê-lo explorado por um longo tempo – o que torna muito inadequado falar em descoberta, como se se tratasse de algo repentino; ignorar essa indução impede qualquer tentativa séria de entendimento da narrativa. O nexo temporal, entre a oração principal e a subordinada, faz supor que antes da viagem Rubião imaginava que Sofia o amava – uma mera fantasia do redator do resumo; o que há na narrativa de modo recorrente é o delírio de grandeza do mineiro, projetando-se na figura do imperador francês Luís Napoleão e transformando Sofia na imperatriz Eugênia, como no sonho do capítulo CIX. Trata-se de algo próximo de desejo de poder e bem distante de amor. Por fim, considerando o resumo todo, o sentido simplificador – no pior sentido da palavra – é o que sobressai, ao transformar o romance Quincas Borba, pleno de meios tons, de negaceios e de vai-e-vem, num claro idílio – o que, de certo modo, considerando o ponto de vista de alguma personagem, em certos pontos da narrativa, talvez também seja, mas não, jamais, exclusivamente.

Outro resumo encontrado na internet:

"(...) Rubião passa a viver no fausto da Corte do Rio de Janeiro, num ambiente a que não estava acostumado e que muito o deslumbra. Torna-se amigo de um casal, Cristiano Palha e Sofia, em torno dos quais e do próprio Rubião gira todo o enredo do romance. (...) Rubião acaba sendo traído por Palha e Sofia, quando Palha faz uma proposta empolgante a Rubião em investir seu dinheiro na área de exportação. Rubião, empolgado com a esperança de multiplicar seu dinheiro, acaba caindo na armadilha de Palha e Sofia, que lhe dizem que outro negociador de "fora" os passou para trás e ficou com o dinheiro do investimento.(...)" (3)

Uma advertência anteposta ao resumo é muito útil: “Aviso: este artigo ou seção contém revelações sobre o enredo.” De fato, revelações notáveis, que talvez nem careçam de comentário. Que empolgação é essa? Rubião torna-se sócio do marido de Sofia sobretudo para permanecer próximo desta; é de fato expropriado pelo casal Palha & Sofia, mas de maneira sutil, num tempo longo, e, de certa forma, com a sua própria anuência demencial, o que torna desnecessária qualquer desculpa; ao contrário do que o resumo faz crer, que o discurso explicativo fosse exigido por Rubião.

2. Machadão via crítica literária

Esses dois resumos – escolhidos entre vários possíveis – mostram, com clareza, os passos em falso que o interessado em conhecer a obra de Machado pode dar. Ocorre que esses maus passos tem muito a ver com a história da leitura da obra do autor de Dom Casmurro. Ainda no final do século XIX foi elaborado o primeiro estudo de fôlego dessa obra. Machado de Assis (4), de Sílvio Romero, o crítico de maior prestígio na época, é um livro estranhíssimo, de quem escolhe seu objeto pelo negativo, isto é, para atribuir diversas faltas, como descuido das coisas nacionais, incapacidade de um estilo escorreito e maciço, desatenção do relevante, e, por conseguinte, atenção ao irrelevante. Claro que o crítico percebia o desnível intelectual entre Machado e seus pares; tratava-se de uma tentativa de mudar o curso da coisas – Machadão vivo e produzindo à beça -, como se fosse dito que a inteligência do criador de Brás Cubas estava voltada para o que não teria importância e interesse. A concepção de crítica subjacente a esse estudo é da ordem da literatura enquanto modelo: se segue tais e tais padrões, é positiva; do contrário, negativa; nenhuma especulação estética, nenhum senso construtivo, de procura da razão de compor uma personagem assim e não assado. Em 1945, Antonio Candido (5) publicou um livrinho precioso, que pode servir de guia seguro para que o leitor não se perca no cipoal das tresleituras romereanas, que por sinal até há pouco tempo tinham bastante eco – quem nunca leu referências a Machado como escritor avesso aos problemas nacionais, em especial à escravidão? Mesmo intelectuais muito argutos e bem informados, como a historiadora Emília Viotti da Costa, se deixaram enovelar nesses cipós. Candido considera que Romero não era mesmo afeito à leitura minuciosa de textos, o que o fez cometer equívocos na avaliação de escritores, mas tinha um senso afiado para estabelecer relações entre literatura e formações históricas e sociais – o problema seria transformar em critério estético-valorativo esse vínculo. Ou ainda, se Romero não percebia – e, no caso em pauta, nem podia perceber, porque era incapaz de lidar com a sutil e fina afronta machadiana ao senso comum, posta nas entrelinhas – era como se não existisse tal vínculo; conseqüentemente, punha-se um sinal de menos diante do criador do conselheiro Aires.

Datam de poucos anos as interpretações de Machado, em forma de peças de crítica, realmente penetrantes. Augusto Meyer, agudíssimo, foi uma espécie de abre-alas na história da leitura dessa obra; trata-se do ensaísta orientado por erudição segura, livre de luxos teóricos, e de gosto formado pela literatura européia do século XIX de cunho realista, que lhe permitem formular observações muito finas e precisas a respeito do maior ficcionista brasileiro, ainda que não formassem sistema. Lúcia Miguel-Pereira e Eugênio Gomes são outros machadianos que por vias diversas – a pesquisa histórica, biográfica e do repertório de referências – elaboraram ensaios instigantes. A primeira edição de Formação da Literatura Brasileira (6) data de 1959 e estão lá, principalmente nos finais de capítulos sobre os romancistas românticos, expostas de maneira sistemática, as razões da grandeza do autor de Quincas Borba. Vale a pena fazer uma pequena antologia desses parágrafos admiráveis, por certo tão válidos hoje quanto há cinqüenta anos:

"(em referência a Manuel Antônio de Almeida) É quase incrível que em 1852, um carioca de vinte anos conseguisse estrangular a retórica embriagadora, a distorção psicológica, o culto do sensacional a fim de exprimir uma visão direta da sociedade de sua terra. E por tê-lo feito, com tanto senso dos limites e possibilidades da sua arte, pressagiou entre nós o fenômeno de consciência literária que foi Machado de Assis, realizando a obra mais discretamente máscula da ficção romântica."

"Se voltarmos porém as vistas para Machado de Assis, veremos que esse mestre admirável se embebeu meticulosamente da obra dos predecessores. A sua linha evolutiva mostra o escritor altamente consciente, que compreendeu o que havia de certo, de definitivo, na orientação de Macedo para a descrição de costumes, no realismo sadio de Manuel Antônio, na vocação analítica de José de Alencar. Ele pressupõe a existência dos predecessores, e esta é uma das razões da sua grandeza: numa literatura em que, a cada geração, os melhores recomeçam da capo e só os medíocres continuam o passado, ele aplicou o seu gênio em assimilar, aprofundar, fecundar o legado positivo das experiências anteriores. Este é o segredo da sua independência em relação aos contemporâneos europeus, do seu alheamento às modas literárias de Portugal e França. Esta, a razão de não terem muitos críticos sabido onde classificá-lo."

Muito do que Candido afirma a respeito de Machadão vale para o próprio Candido. Se ainda hoje é difícil ler Romero sem repetir contra o crítico as esculhambações que ele, Romero, dirigia a Machado ou a José Veríssimo, imaginemos há sessenta anos! Candido foi capaz dessa proeza, ler com sereno distanciamento livros de títulos absurdos, como Zeverissimações ineptas da crítica, e procurou nestes o que lhe parecia válido, o estabelecimento de relações entre literatura e sociedade. Ou, partindo dos comentários de Veríssimo a respeito dos árcades, refazê-los em outra chave, com maior riqueza teórica e articulação historiográfica, mas sempre – não custa insistir, sempre – considerando a contribuição de Veríssimo como ponto de partida, que pode ou deve ser continuada e adensada.

A dupla visada de Antonio Candido – ao mesmo tempo estética e histórica, acrescida de uma capacidade analítica incomum – está também presente em Esquema de Machado de Assis (7). Ambos, Formação e o ensaio citado, formam a explicação imprescindível do conjunto da obra de Machadão, a partir da qual Roberto Schwarz formulou leituras pontuais dos romances. Parece-me claro que os trabalhos de Candido e de Schwarz são importantes por muitos motivos, entre os quais seguir as trilhas apontadas pelo próprio Machado.

3. Machadão via cinema

Machadiano: o adjetivo comporta vários significados; interessa-nos aqui qualificar o artista ou intelectual que não faz tábula rasa do passado, que procura entender seus predecessores, sem deixar de lado sequer os francamente medíocres; quem, enfim, procura aprender com os desacertos e com as bolas dentro de seus colegas, porque tem entranhado o princípio de que o trabalho artístico e intelectual têm um sentido coletivo; quem encara o próprio ofício como possibilidade de adensar uma experiência social; quem reconhece que um verso de Drummond é resultado do esforço do próprio poeta e de uma multidão de grandes e pequenos escritores com os quais o criador de Claro Enigma dialogou.

"O tempo é minha matéria, o tempo presente, a vida presente, os homens presentes." (8) Nesse sentido, ser machadiano é promover de alguma maneira esse adensamento. Glauber Rocha, como crítico, não fez outra coisa ao mencionar as obras de Humberto Mauro e Mário Peixoto como marcos a partir dos quais o cinema brasileiro se forma, em Revisão crítica do cinema brasileiro (9); enquanto diretor, a mesma disposição de criar retomando estilos e pontos de vista de seus antecessores, estabelecendo um diálogo produtivo com o passado. Mauro é também um marco na relação do cinema com Machado. A perícia narrativa e os jogos verbais de Um apólogo encontram no autor de Ganga Bruta um aficionado pelos mecanismos relacionais das imagens: contrapontos, cortes, montagens são os recursos de uma transposição rigorosa do célebre – obrigatório nas antologias escolares de gerações passadas – diálogo entre a agulha e a linha. Posso estar enganado, mas creio que o encontro entre Mauro e Machado se dá através da presença deste nessas antologias: o escritor fixado apenas enquanto engenhoso fabulista – e não como artista máximo de seu tempo, destruidor dos mitos que sustentavam o patriarcado em sua face nacional – está no mesmo plano do cineasta acadêmico e cioso da própria importância na história do cinema brasileiro.

Um ponto de interesse no diálogo entre crítica literária e cinema é a diferença entre as duas adaptações de Memórias póstumas de Brás Cubas. A de Bressane é de meados dos anos oitenta e a de Klotzel do início deste século. Em 1990 foi publicada a leitura mais bem fundamentada desse romance, Um mestre na periferia do capitalismo (10), de Roberto Schwarz. Trata-se de obra muito complexa, que contém uma muito fina análise da personagem principal, em que Schwarz toca numa questão que interessou aos cineastas mencionados: o crítico considera que Brás Cubas afronta o leitor de várias formas, uma delas é apresentar-se como morto e desinteressado dos problemas prosaicos do mundo dos vivos; pelo contrário, a sua trajetória é a de um sujeito vivíssimo, que não abdica de interesses, muito menos se envergonha deles; quando representam uma afronta à ordem burguesa em padrão europeu, a desenvoltura de Brás em expô-los se torna maior, como quem está disposto a criar caso; enfim, ao contrário do que a personagem explicita, o que a move é fazer valer sua opinião – formulada de maneira estapafúrdia a respeito de uma imensidão de assuntos -, seus interesses, suas vontades. Observe-se como as cenas iniciais das duas fitas respondem a essa diferença: Bressane leva rigorosamente a sério o morto ativo e perscruta as entranhas do cadáver em busca de respostas à perplexidade do enigma proposto pelo autor-defunto; manteve-se a tensão entre a narrativa de cunho realista e a lógica das coisas terrenas, segundo a qual mortos não agem, muito menos relatam experiências. Klotzel, que certamente leu Schwarz antes de realizar seu filme, faz Brás, na cena do velório, dar uma piscadinha para a câmera, como quem revela um segredo; cria-se uma cumplicidade entre personagem e espectador logo de cara, que, ao longo da fita, se desdobrará: morto quando lhe convém; se lhe aprouver, está vivo. Transformou-se a afronta ao leitor (e/ou à lógica) em cumplicidade. Creio que essa distinção caracteriza uma e outra fita, salvo engano.

Um filme importante, que consta desta mostra, é a adaptação que Nélson Pereira dos Santos fez de O alienista. Trata-se de uma fita que dialoga com a contracultura, uma referência forte da época, que negava, de forma generalizada, legitimidade a qualquer instituição. O título desbundado do filme – Azyllo muito louco – é como se negasse legitimidade à própria língua. O conto tem um quê de fábula realista e tragicômica, a respeito da institucionalização da psiquiatria. Parece que há, para Nélson, uma pergunta pulsando: o que me diz essa fábula hoje, 1970, período de agudas tensões, protagonizado por forças ilegítimas que procuram se legitimar a qualquer custo? É da mesma época (1969) uma outra adaptação desse conto, feita por Roberto Schwarz, para o teatro, com o título de A lata de lixo da história (11). Creio que há um ânimo comum ao trabalho de Nélson e de Roberto, de dar um sentido alegórico aos embates entre o portador de um suposto saber desdobrado em poder e os ditos anormais. O forte sentido político dessa narrativa já é dado por Machado, que nomeia os pontos de inflexão da trama como etapas da Revolução Francesa. Da maneira mais explícita. Acredito que o espectador terá uma experiência interessante se fizer a leitura do conto e da adaptação de Roberto antes de assistir à fita.

Capitu é uma fita do maior interesse; trata-se do primeiro roteiro de Paulo Emilio Salles Gomes concretizado; Lygia Fagundes Telles e Saraceni, também diretor, colaboraram na adaptação. Paulo Emilio, no ano seguinte à sua produção, deu um curso sobre cinema e literatura, na antiga FFCL-USP, no qual utilizava essa fita como objeto de estudo. Consta da crônica uspiana que os alunos faziam restrições severas a essa adaptação de Dom Casmurro e Paulo Emilio aceitava as críticas mais duras com a maior tranqüilidade. Algum tempo depois, a carreira machadiana de Paulo tomou novo curso, com a publicação de Três mulheres de três pppês (12), um conjunto de contos que dialogam claramente com Dom Casmurro, Memorial de Aires e Memórias póstumas. Saraceni adaptou o conto Duas vezes com Helena na fita que recebeu o título Ao sul de meu corpo, uma comovente homenagem ao crítico e professor entusiasta do Cinema Novo. Ao sul e Capitu podem ser entendidas como partes de uma unidade: o diálogo Machado – Paulo Emilio – Saraceni, do mesmo modo que os contos de Três mulheres são melhor compreendidos se forem considerados como um todo. Esse diálogo ainda teve um antecedente: há exatos cinqüenta anos celebrava-se cinqüenta anos da morte de Machadão e Paulo Emilio procurou possíveis vínculos entre o escritor e o cinema. Encontrou-os num artigo de R. Magalhães Júnior, sobre a intuição cinematográfica de Machado de Assis. Paulo reproduz um ou outro trecho do tal artigo e os analisa no espírito de expor os equívocos dessa suposta intuição. Paulo tem a elegância de não acusar Magalhães de anacrônico, mas é isso que está escrito nas entrelinhas. Alguns trechos da crítica de Paulo são especialmente instrutivos para quem procura estabelecer correspondências entre literatura e cinema (13):

"Quando o cinema se sentiu com forças para contar histórias, procurou, de início, imitar a técnica do espetáculo teatral. A célebre tomada de consciência do cinema como arte autônoma, tema predileto dos seus primeiros estetas, consistiu na realidade em seu alinhamento ao lado da literatura narrativa. Adaptando conscientemente ou redescobrindo por conta própria os recursos da expressão literária, o cinema percorreu e percorre incansavelmente os caminhos abertos pelo romance, pelo conto e pela poesia.(...) O grande recurso do romance e o conto, que o teatro não possui, é o narrador. A câmara e a colagem das tomadas eram capazes de narrar e podiam, quando necessário, receber o amparo dos letreiros."

É fácil desgostar de filmes nacionais. Mais fácil desgostar de fitas cujos roteiros são adaptações de romances e contos aos quais devotamos amor irrestrito – e a palavra trair é atirada na cara de cineastas como se fossem amantes cafajestes saídos de uma letra de tango. Mais fácil ainda desgostar de fitas cujos roteiros são extraídos da obra de um autor da grandeza de Machado. Enfim, as razões externas para apedrejar essas fitas são muitas. Deixemos essas razões de lado, recusemos facilidades. Há muitos motivos para voltar o olhar mais atento e generoso para o trabalho de um conjunto de cineastas que procuraram fazer Machado de Assis dialogar conosco, 'os homens presentes' do poema de Drummond. Esses trabalhos merecem respostas, não pedras, para que possam continuar portando suas mensagens, débeis ou fortes. Não estou propondo que sejamos cegos para deslizes, mão pesada, desequilíbrios ou vulgaridades que essas fitas possam ter; estou propondo que nos deixemos impregnar pela postura de Antonio Candido e de Paulo Emilio Salles Gomes:

"Na apreciação do passado do nosso cinema, a opção otimista tinge-se de sentimentalismo. Quanto a mim, não me furto a esse estado de espírito, e aplico à cinematografia brasileira as palavras de Antonio Candido sobre a nossa literatura: ‘se não for amada, não revelará sua mensagem, e se não a amarmos, ninguém o fará por nós.’ (...) Convém lembrar, ainda, por menos agradável que se considere a asserção, que o cinema brasileiro nos exprime e revela." (14)

 

1. "Catar feijão", in João Cabral de Melo Neto, A educação pela pedra. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.

2. Disponível em: http://mostra.uol.com.br/31/
exib_filme_arquivo.php?ano=11&filme=607

3. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Quincas_Borba

4. Campinas: Editora da Unicamp, 1992.

5. Introdução ao método crítico de Sílvio Romero. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007. 3a. ed.

6. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2007. 11a. ed.

7. Vários Escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1977. 2a. ed.

8. Mãos dadas, in Sentimento do mundo. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2003

9. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 2a ed.

10. São Paulo: Duas Cidades, 1990.

11. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 2a. ed.

12. São Paulo: Perspectiva, 1977.

13. O narrador e a câmara in Paulo Emilio, Crítica de cinema no Suplemento Literário vol. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

14. Decepção e esperança in Paulo Emilio, Crítica de cinema no Suplemento Literário vol. 2. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981

 

Francisco Roberto Papaterra Limongi Mariutti é doutorando em Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo.