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Machado de Assis, plural Duas vias de acesso a O Cinema e Machado Brás Cubas: reflexões |
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No âmbito da mostra Memórias cinematográficas de Machado de Assis, que reúne um determinado conjunto de filmes agrupados a partir do critério de compartilharem a autoria das obras nas quais foram baseados – no caso, a assinatura de um dos maiores escritores brasileiros, cuja morte completa cem anos em 2008 –, o polêmico e recorrente tema da “adaptação” não deixa de ser levantado. Obviamente, a visão conjunta das inúmeras e distintas investidas do cinema brasileiro sobre a obra do bruxo do Cosme Velho, invariavelmente, despertará no público a velha, mas inevitável, discussão sobre a fidelidade das diferentes adaptações cinematográficas. Na visão dos estudiosos do cinema, o termo fidelidade – com sua conotação moral e, evidentemente sexual, ligada à cumplicidade ou traição – já foi unanimemente superado, pois, como sintetizou Randal Johnson, a própria busca, desejo ou cobrança por fidelidade é a-histórica, subjetiva e, sobretudo, impraticável. Isso se deve ao fato de que a comparação hierárquica – inevitavelmente presente numa avaliação decorrente da idéia que o livro é melhor que o filme ou vice-versa, ou, ainda, que determinada adaptação foi mais ou menos fiel que outra –, opondo ou tomando como critério de avaliação a oposição entre uma obra literária e uma obra cinematográfica, pelo próprio princípio de se comparar o incomparável (literatura com cinema), já revela a impossibilidade de um debate que não incorra em critérios subjetivos e de gosto pessoal, por mais óbvio que possa parecer considerar uma obra-prima da literatura brasileira melhor que uma pornochanchada corriqueira. Mas o gosto pessoal e as opiniões aparentemente consensuais são obviamente importantes e Robert Stam afirmou que a idéia de fidelidade não deve ser descartada completamente, devido a três impressões que o público pode vir a ter a partir da visão de adaptações cinematográficas: (a) de que algumas adaptações realmente falham em “realizar” o que mais apreciamos nos romances que lhes deram origem; (b) de que algumas adaptações são, em verdade, melhores que outras; e (c) de que algumas adaptações perdem, pelo menos, alguns dos aspectos salientes de suas fontes. As impressões apontadas por Stam estão associadas a expectativas da platéia diante de obras que, como no caso de praticamente todos os filmes exibidos na mostra Memórias cinematográficas de Machado de Assis, são adaptações, antes de tudo, por meio de atitudes discursivas: são filmes que se assumem abertamente como adaptações. Essa atitude por parte do realizador geralmente leva a platéia a nutrir diferentes expectativas a respeito do que vai encontrar nas telas, a partir da noção prévia que se tenha sobre a obra adaptada – a palavra clássico, por exemplo, pode ser compreendida com diferentes sentidos, positivos ou negativos. O cuidado deve ser não confundir expectativas – geralmente alimentadas pela própria forma como o filme se apresenta em relação ao “texto-fonte”, mas que variam de espectador para espectador – com exigências, muitas delas impossíveis de serem atendidas, mesmo se, porventura, desejadas. Num texto publicado originalmente em 1946, o crítico e teórico francês André Bazin, sem querer “defender o indefensável” ao se referir a adaptações cinematográficas de obras de Dostoievski ou Balzac que ele próprio considerava artisticamente frustrantes, afirmava que deveria se pensar em adaptações como “condensações” ou “resumos”, que tinham como preocupação maior satisfazer ao público ao qual se destinavam e não ao próprio “cinema”, no sentido de busca pelo melhor que aquela arte poderia atingir. Diante da visão de adaptações para as telas de clássicos da literatura brasileira como o romance Dom Casmurro ou o conto A cartomante que, como disse Bazin a respeito de uma versão para o cinema de O idiota, de Dostoievski, podem enveredar simplesmente pela banalização da trama ou mera usurpação do título original, cabe lembrar sua crítica aos que defendiam a “intocabilidade da obra de arte” e o respeito ao “autor” decorrente dela. Mais interessante ainda era a sugestão de Bazin do futuro ingresso das artes num promissor “reino das adaptações” (2050 era o ano que ele previa...), no qual as noções de obra de arte e do próprio autor seriam destruídas e o crítico não mais identificaria a adaptação como originada de um romance, a partir do qual foi feito o filme, mas como uma única obra refletida através de expressões artísticas distintas. Desse modo, lembrando da valorização da diferença e da heterogenia na expressão dialogismo – presente na obra de Mikhail Bakthin e traduzida como intertextualidade por Julia Kristeva, referindo-se à confluência de textos que, invariavelmente, organizam-se no interior de cada texto em particular, sejam adaptações ou fontes “originais” –, devemos pensar tanto sobre o que a obra de Machado de Asiss representa para suas adaptações cinematográficas (tendo sido esse o critério de seleção da mostra, um elemento que os filmes compartilhavam), quanto também sobre o que as obras cinematográficas refletem sobre o universo machadiano, em diferentes tempos, contextos e sob os pontos de vista de diferentes realizadores, alimentando a opinião do público e de outros cineastas sobre a obra do escritor. Além disso, as obras assumidas como “textos-fonte” – os romances e contos de Machado de Assis – seriam, de fato, a principal referência para os filmes? E essa pergunta poderia ser endereçada não apenas para os longas-metragens de cineastas considerados como “autores” (com a identificação do diretor de cinema com o escritor a partir, sobretudo, do advento do cinema moderno no pós-guerra) – tais como Julio Bressane ou Sérgio Bianchi, que assumidamente propõem reinterpretações pessoais a partir dos textos Machadianos que inspiraram seus filmes –, mas, também, para aquelas adaptações aparentemente mais convencionais e que podem dar a impressão de que tinham simplesmente a intenção de “reproduzir” no cinema algumas das características da obra literária? É curioso que, em geral, a principal concessão feita à noção de “unidade da obra” – no caso, das obras-primas de Machado de Assis, que, para alguns, representam “uma síntese única cujo equilíbrio molecular é automaticamente afetado quando sua forma é modificada”, como escreveu Bazin – seja feita somente quando da valorização da “unidade do autor” responsável pela adaptação. Ou seja, o filme só deixaria de ser uma adaptação machadiana (pior ou melhor realizada), quando passasse a ser considerada uma releitura, seja bressaniana ou bianchiana, por exemplo, sendo então avaliada a partir das características pessoais do conjunto de obras desses cineastas. É obvio que, no campo dos estudos de adaptação, a discussão tem se aprofundado para além desse debate superficial e, inclusive, outros termos substitutos têm sido propostos para nomear essa relação (que pode se dar, como nos casos citados, entre livro e filme, mas não apenas), tentando repensar a manutenção dessas “unidades” mencionadas. O uso da expressão tradução, por exemplo, já apontaria para os inevitáveis ganhos e perdas típicas de qualquer tradução, em que uma obra sempre será resignificada, se tornando outra obra invariavelmente diferente. Já a opção pela palavra leitura confere o sentido de um processo inevitavelmente parcial, pessoal e conjetural, em que sempre há um “leitor” (e autor) responsável por conferir características particulares à obra. Entretanto, uma clara limitação de todos esses termos reside no risco de incursão numa visão estanque de um bem definido processo representado por duas obras extremas (o original e sua adaptação), encabeçada por um autor (responsável pelo processo de “adaptação” ou tradução, leitura, transcriação etc) e com um objetivo (a “qualidade” do processo). Essa visão é muito cômoda se o desejo for avaliar resultados, concedendo méritos ou encontrando culpados, o que não parece ser a coisa mais proveitosa a se fazer. Mas, caso se recuse, por exemplo, uma abordagem estética passível de incorrer num equivocado comparatismo essencialista de caráter formalista, existe ainda a opção por uma abordagem de viés sociológico, através da valorização de uma análise das adaptações como produtos sócio-culturais. Esse é o caminho apontado, entre outros, por Dudley Andrew, na sugestão de busca por efetivações de unidades narrativas equivalentes em sistemas semióticos absolutamente diferentes (como o filme e o romance), encaminhando-se para o estudo dos diferentes estilos e períodos do cinema em relação aos diferentes estilos e períodos da literatura. Mas a estratégia de Andrew é contestada, entre outros, por Robert Ray, assinalando-a como relevante apenas para nutrir investigações mais rigorosas sobre as transações entre “literatura clássica” e “filmes sérios”, e ressaltando como a própria mídia comercial atualmente mistura as mais diferentes formas e estruturas de linguagem possíveis, numa época de uso, sem precedente, dos recursos de comunicação e de total interação entre as mídias, e vivendo, desde já, o tal “reino da adaptação” preconizado por Bazin. Desse modo, talvez possamos questionar, como provocação, se já estamos realmente aptos para destruirmos a noção de obra e de autor, como previu Bazin há mais de cinqüenta anos. Será que poderíamos talvez pensar que mesmo uma obra, aparentemente concreta, como uma determinada história escrita por Machado de Assis, não represente mais hoje algo único e inconfundível, que permita uma leitura objetiva e cujo sentido se estabeleça indistintamente, mas sim uma outra coisa que, enredada numa ampla rede de sentidos, seja constituída a partir de diferentes leituras, distintamente mediadas ou, mesmo, midiadas, das quais fazem parte, em maior ou menor grau, as próprias adaptações cinematográficas? Enfim, é ver para crer.
Referências bibliográficas NAREMORE, James (org.) Film adaptation. New Brunswick (USA): Rutgers University Press, 2000. PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003. SILVA, Marcel Vieira Barreto; FREIRE, Rafael de Luna. Sobre uma sociologia da adaptação fílmica: um ensaio de método. Crítica cultural, Universidade do Sul de Santa Catarina, v. 2, n.2, jul/dez. 2007.
Rafael de Luna
Freire é professor do curso de cinema da UFF, coordenador
de Documentação da Cinemateca do MAM e diretor da Associação
Cultural Tela Brasilis.
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