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Machado de Assis, plural Duas vias de acesso a O Cinema e Machado Brás Cubas: reflexões |
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Em 1956, quando o neo-realismo ainda estava em pauta no meio cinematográfico brasileiro e Rio, 40 graus finalmente havia sido liberado, o veterano roteirista Alinor Azevedo, um dos fundadores da Atlântida, publicou em Para Todos um artigo no qual expunha as relações conflituosas entre produtores e roteiristas. No texto, Alinor aconselhava aos novatos buscarem a simplicidade, na trilha aberta pela “escola italiana”, até porque o Brasil não comportava uma verdadeira indústria cinematográfica. No caso das adaptações literárias, por exemplo, deveria-se preferir o conto ao romance. E concluía: Certa vez, perguntaram-me por que eu não adaptava os principais romances de Machado de Assis. “Porque respeito muito a memória deste senhor”, respondi. O que foi dito acima ilustra dois aspectos contraditórios que estão sempre presentes quando se fala em adaptação literária para o cinema. O primeiro deles é de ordem contextual, e trata dos tempos específicos e abstratos que todo leitor/espectador cria a partir da aceitação das diferenças e do confronto inevitável entre o “original” e a sua “releitura”, isto é, entre dois textos (livro e filme) muitas vezes separados por décadas ou mesmo por séculos de distância. O segundo aspecto se refere justamente à maior ou menor exigência pelo respeito à “obra original”, como se qualquer adaptação, necessariamente, carregasse consigo o vírus da descaracterização ou, na pior das hipóteses, da deformação completa. Assim, no Brasil de 1956, a busca pela complexa simplicidade neo-realista, bem como a situação economicamente precária da atividade cinematográfica no país, sugeria ao roteirista Alinor Azevedo que o justo seria adaptar contos e não romances, e isto poderia valer mesmo para um clássico de nossa literatura, como Machado de Assis. Por outro lado, tal postura – bastante lúcida, diga-se de passagem – não atendia apenas a uma exigência prática (ausência de recursos), mas a um certo pudor em se queimar as obras-primas da literatura em filmes eventualmente medíocres, que na verdade seriam indignos do “original”, o que configuraria um desrespeito. No entender do roteirista, naquele momento, o cinema brasileiro não só estava despreparado como indústria, mas também como arte. As três décadas seguintes (1960-1980) assistiriam, contudo, a mudanças radicais no campo cultural, em particular no cinema. Uma parcela ideologicamente significativa desse setor, que Jean-Claude Bernardet denominou de “cinema culto”, foi bastante pródiga em usar a literatura brasileira e os seus grandes clássicos – fossem eles contos ou romances – como base para seus projetos, e Machado de Assis não escapou ao procedimento. Ao longo daquele período, a estratégia da adaptação literária atendeu a propósitos diversos, mesclando ao gosto pessoal de cada realizador questões de ordem mercadológica, política e institucional. Basta dizer que (sobretudo durante os anos 1970) a escolha deste ou daquele escritor poderia, por exemplo, influenciar negativa ou positivamente na liberação do filme pela censura. Em termos de um “cinema culto”, compreendendo aí o que se convencionou chamar de cinema novo e de cinema marginal, Machado de Assis foi objeto de atenção por parte de filmes muito diferentes entre si. Examinar as escolhas e as releituras estabelecidas por esses filmes nos permite verificar de que maneira Machado de Assis serviu a intenções e a diálogos específicos, e, conseqüentemente, de que maneira o cinema acabou por devolver ao público espectador – e também leitor –, não a perfeita reprodução da arte machadiana, mas versões ou leituras desse escritor, a ponto de nos permitir falar não em um, mas em muitos “Machados”, ou melhor, em um Machado de Assis plural. Basta pensarmos na pluralidade de estilos em filmes tão diversos como Viagem ao fim do mundo (Fernando Coni Campos, 1968), Capitu (Paulo César Saraceni, 1968), Azyllo muito louco (Nelson Pereira dos Santos, 1970), Missa do Galo (Roman Stulbach, 1973), A cartomante (Marcos Farias, 1975), Brás Cubas (Julio Bressane, 1986) e Quincas Borba (Roberto Santos, 1987). Com Viagem ao fim do mundo, ganhador do Leopardo de Prata no Festival de Locarno (Suíça), Fernando Coni Campos realizou uma obra de difícil definição em relação aos rótulos simplificadores com os quais nos habituamos a tratar a história do cinema feito no Brasil. “Cinema novo”? “Cinema marginal”? “Cinema tropicalista”? Viagem ao fim do mundo é, sobretudo, um filme extremamente pessoal em seu resultado. O “fim do mundo” a que alude o título tanto pode ser o Terceiro Mundo que explodia em guerrilhas, bombas e brigittes bardot, quanto pode ser o nosso próprio mundo interior, espiritual/artístico, tão particular que chega a ser quase inexprimível. Não por acaso, entre as diversas referências literárias com as quais Coni Campos trabalha em seu filme, uma delas é justamente o capítulo “O delírio”, do romance Memórias póstumas de Brás Cubas. O capítulo constrói, em ritmo vertiginoso, as reflexões sobre a condição humana feitas pelo personagem-título, então prestes a morrer, ao mesmo tempo em que descreve uma alucinante viagem à “origem dos séculos”. Coni Campos traduz essa viagem através de uma igualmente vertiginosa montagem de imagens de arquivo e de cinejornais. A maior parte dessas imagens refere-se à guerra, com ênfase no horror nazi-fascista. Tal é a livre adaptação de Viagem ao fim do mundo que Machado de Assis, na pena de Brás Cubas, sintetiza como uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das cousas. O filme também coloca em cena um hipopótamo (o guia da viagem, no delírio de Brás Cubas) e uma bela mulher (a Natureza ou Pandora, que vai desafiá-lo), integrados à ação por efeito de inventivos enquadramentos e de uma inteligente montagem. A seqüência – bastante longa – é, sem dúvida, uma das que mais chama a atenção no conjunto do filme. Porém, Viagem ao fim do mundo não é uma adaptação de Machado de Assis. Coni Campos apenas se vale de dois capítulos de Memórias póstumas de Brás Cubas, isto é, o já comentado “O delírio” e um outro capítulo bem curto, na verdade não-narrativo e sim reflexivo, intitulado “O senão do livro”. No romance, esse capítulo, composto por dois parágrafos, é uma espécie de pausa em que o personagem-narrador reflete sobre a possível reação negativa que o livro possa causar no leitor acostumado às narrativas convencionais. Mas, nesse caso, o único culpado seria o próprio leitor: Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem... A transposição desse capítulo é responsável por um dos momentos mais belos de Viagem ao fim do mundo, pois, de forma muito sensível, Coni Campos mantém, em sua quase integridade, o texto de Machado de Assis, apenas substituindo a palavra “livro” pela palavra “filme”. Enquanto a voz off prossegue, surgem imagens documentais de ruas, mendigos, bêbados e loucos em pátios de hospitais. Ao mesmo tempo em que sintetiza uma das questões cruciais do cinema político moderno (o enfrentamento e a recusa da fácil comunicabilidade com o público), o discurso adquire um tom de sutil manifesto de defesa da poesia e da invenção no cinema. Dezoito anos depois, muitas imagens de Viagem ao fim do mundo (referentes à seqüência do delírio) serão retomadas por Julio Bressane, em sua magistral adaptação de Brás Cubas. Bressane havia sido assistente de Coni Campos em uma parte das filmagens de Viagem ao fim do mundo. Em 1986, já com uma carreira sólida de longas-metragens, e iniciando um projeto mais amplo de diálogo com textos antológicos da literatura brasileira (Oswald de Andrade, Antônio Vieira e o próprio Machado), Bressane escolhe Memórias póstumas de Brás Cubas com uma evidente intenção de síntese modernista, em que se fundem o realismo literário do final do século XIX, a semana de 1922, a chanchada dos anos 1950, o tropicalismo de 1968, o próprio estilo bressaniano de filmar e as inovações teatrais de grupos surgidos no final dos anos 1970, como Asdrúbal Trouxe o Trombone. A adaptação de Bressane, no entanto, não tende para a desconstrução polêmica ou gratuita, e sim para uma real tradução da obra. Tal processo se configura no verdadeiro acerto do filme, pois o estilo fragmentado e reflexivo do romance se presta perfeitamente ao estilo narrativo de Bressane. Da mesma forma, certas imagens tão próprias à literatura - como, por exemplo, a que se refere à hipocondria, descrita no livro como “essa flor amarela, solitária e mórbida, de um cheiro inebriante e sutil” -, ganham, na versão cinematográfica, tradução à altura, em planos que variam do vermelho vivo ao sépia e ao amarelo, e que utilizam o gelo seco e a grande angular, recursos fotográficos/cênicos que - às vezes com uma apropriada dose metalingüística - conferem ao filme uma tonalidade justa, entre a melancolia e a acidez. É também melancólico o tom geral de Quincas Borba, último longa-metragem de Roberto Santos, lançado em 1988, portanto dois anos após Brás Cubas, de Bressane. Trata-se, no entanto, de uma melancolia de outra ordem, menos preocupada em dialogar com o estilo machadiano (embora a melancolia faça parte da personagem-título) do que em retratar o mal-estar do próprio tempo em que o filme foi realizado. Talvez seja possível dizer que, ao realizar Quincas Borba, Roberto Santos terminou por radiografar, quem sabe até involuntariamente?, a ressaca de uma época (final do século XX) que estava prestes a sofrer mudanças substanciais, mudanças as quais o próprio realizador não acompanharia. Talvez por isso o tom gélido da fotografia, poética em seus exteriores e quase engessada em um compromisso de iluminar os cenários interiores de forma televisiva, e a sua correspondência na contraditória beleza de Brigitte Broder no papel de Sofia, beleza exterior, no entanto, incapaz de dar vida interior ao personagem. Ainda assim, o país da Nova República, captado pelas lentes um tanto amargas de Roberto Santos, não deixa de ser o Brasil diagnosticado por Machado de Assis em 1891, ano do aparecimento do romance homônimo. As relações regradas pela otimização do lucro, pela traição calculada, pelo sucateamento das ilusões, pela loucura não como desespero mas como nota irônica, pelo agenciamento de influências, pelo crédito financeiro e pelo descrédito moral - tudo isto está presente no livro como no filme. O personagem Rubião, herdeiro universal de Quincas Borba, que, de humilde professor, se torna influente “capitalista” e depois acaba como um mendigo, é uma espécie de náufrago existencial que se agarra na máxima do humanitismo - “ao vencedor, as batatas!”. Na adaptação de Roberto Santos ainda há lugar para a intenção solidária em relação a esse personagem, simpaticamente vivido por Helber Rangel. Mas é justamente a solidariedade que parece ser o grande pária no filme Quincas Borba. Afinal, no momento em que o país parecia ansiar pela entrada na via do pensamento único, do fim da história e da privatização globalizada, a solidariedade era, mais do que nunca, um sentimento absolutamente despropositado. Se o filme de Roberto Santos, mesmo tão arraigado ao seu próprio tempo, acaba por encontrar correspondência no humor irônico de Machado de Assis, o mesmo não se dá com A cartomante, longa que Marcos Farias realizou em 1974, lançado no ano seguinte. Com certa facilidade, é possível afirmar que, apesar da matriz literária, quase nada há de machadiano em A cartomante. O que absolutamente não invalida o filme, aliás, bastante interessante em sua bipartição narrativa. A cartomante situa a ação primeiramente na segunda metade do século XIX, tal como no conto, e depois a reencena cem anos depois, com os mesmos atores (Ivan Cândido, Ítala Nandi e Maurício do Valle). O que mais chama a atenção nessa estratégia é o desnível na representação dessas duas épocas. Na segunda parte, contemporânea, o diretor tem a seu favor todos os elementos - o modo de falar e de agir dos atores, os ambientes internos e externos, a própria cenografia de interiores. Na primeira parte, porém, as limitações da produção se fazem visíveis com toda a nitidez. Os atores parecem inteiramente inadequados, os figurinos saltam aos olhos, a nudez dos cenários e a simplicidade dos objetos de cena impedem qualquer transporte convencional ao “passado”. A tal ponto é incômoda essa sensação que o espectador experimenta um verdadeiro alívio quando o filme salta para o século XX. E é, de fato, aí que A cartomante ganha um interesse inusitado, decorrente de sua explícita recusa em traduzir o “tempo”, o “espírito” ou o “estilo” de Machado de Assis. A intriga é a mesma, mas ela, na verdade, pouco importa. O que interessa é construir uma situação amorosa (o triângulo) que permita retratar os costumes de uma determinada classe média urbana no Brasil do milagre econômico. E isso A cartomante faz bem, seguindo duas trilhas absolutamente antimachadianas: a pornochanchada e o drama de Nelson Rodrigues. A preocupação em retratar a época e o estilo de Machado de Assis sem deixar de se reportar à contemporaneidade é determinante na adaptação que Paulo César Saraceni vai fazer do romance Dom Casmurro. A começar pelo próprio título do filme, Capitu, que inicialmente sugere deslocar a atenção do espectador do personagem masculino (Bentinho, vivido por Othon Bastos) para a personagem feminina. Mas tal deslocamento, veremos em seguida, ironicamente acaba por devolver o interesse ao personagem masculino. Na autobiografia que publicou em 1993, Saraceni assume a leitura de que Capitu refletiu, a seu modo, a revolução de costumes (sobretudo sexuais) que atingiria em cheio a instituição do casamento a partir de 1968, ano em que o filme foi realizado. De fato, a tensão de Capitu parece estar exatamente na abordagem implícita desse tema, e talvez por isso a personagem feminina, interpretada por Isabella, tenha sido, na época, alvo de tantos protestos. Afinal, a ambigüidade necessária à Capitu é praticamente inexistente no rosto de Isabella, não porque o filme tenha optado por revelá-la “adúltera” ou “fiel”, mas porque esta já não mais deveria ser uma questão. Involuntariamente ou não, o rosto contemporâneo e maduro de Isabella detona o que poderia existir de mais obviamente machadiano no projeto, restando ao filme investigar... o drama de Bentinho. Fidelidade é uma palavra que passa longe de Azyllo muito louco, filme que Nelson Pereira dos Santos extraiu do conto O alienista. Os créditos iniciais já se encarregam de dissipar qualquer dúvida: trata-se de uma “adaptação livre”, expressão que, em pleno ano de 1970, não deixava de carregar um sentido bem mais amplo e político do que aquele que faz adivinhar apenas um método de roteirização. A afirmação da liberdade é, aliás, a tônica desse filme, tanto no processo de adaptação do conto quanto na própria mise-en-scène, conjugando o cenário paradisíaco de Paraty e a espontaneidade dos atores ao balé dos movimentos de câmera conduzidos por Dib Lutfi e Rogério Noel. O alienista é uma das obras mais abertamente políticas de Machado de Assis. Não é por acaso que Nelson Pereira dos Santos a escolheu. No momento em que o regime militar se torna mais sanguinário e, por outro lado, começa a articular a Política Nacional de Cultura (à qual mais tarde os cineastas ligados ao movimento do cinema novo também buscarão se adaptar), os “grande vultos” da cultura brasileira, Machado de Assis incluso, passam a ser importantes “cavalos-de-tróia” para se negociar com a censura - e se protestar contra ela. Assim, não será o Machado de Assis interessado em investigar as sutilezas da alma humana ou a questão do adultério que servirá ao intuito de Nelson Pereira. O alienista, magistral interpretação do casuísmo das instituições políticas brasileiras e do golpismo nacional, ganha na interpretação de Nelson Pereira um viés mais rasgadamente alegórico. O resultado, porém, não é brilhante: as reviravoltas que estão presentes no conto e que permanecem na adaptação cinematográfica ganham um estranho tratamento monocórdio, apesar da intencionalidade teatral e do absurdo das situações encenadas. Na verdade, todos os filmes até aqui examinados podem ser vistos como adaptações “livres”. A liberdade é necessária e talvez seja mesmo inerente a qualquer transposição de uma narrativa literária para o plano audiovisual. A maneira como cada filme realiza essa operação é que possibilita falar em obras mais ou menos afinadas ao “original”. Trata-se, portanto, de uma escolha que parte do realizador, e não de uma maior ou menor capacidade que cada diretor possui de “chegar lá”, de atingir o verdadeiro “espírito” machadiano. Não se trata de um processo teleológico, mas de um mergulho estético e político com base em referências específicas. Talvez por isso chame tanto a atenção a singularidade de um filme como Missa do Galo, realizado por Roman Stulbach em 1973, único curta-metragem dentre os títulos aqui comentados. Há nesse filme uma notável dedicação na procura pelo “tom” adequado à observação do triângulo amoroso, triângulo que não chega a se concretizar como tragédia, como farsa ou como delírio, mas que permanece como potência erótica reprimida, sufocada por preconceitos morais e regras institucionais. Roman Stulbach, contando com o trabalho luxuoso de Mário Carneiro (fotografia), de Anísio Medeiros (cenografia e figurinos) e da atriz Fernanda Montenegro (como D. Conceição), evita a alegoria, a desconstrução metalingüística ou a mera apropriação da anedota para chegar a uma leitura atenta e contida da sensualidade que um gesto sutil esconde e da violência de um grito por trás do silêncio. Há muito de machadiano nessa postura algo temerosa dos grandes rompantes e dos contrastes exacerbados. Porém, não se deve ver nisso qualquer sombra de “submissão” ou de “obediência” ao “original”. O maior desafio de Missa do Galo foi manter-se próximo do conto sem recorrer aos artifícios de distanciamento necessários à boa tradução (no sentido bressaniano, por exemplo). O curta de Roman Stulbach não pretende estar além ou aquém da matriz literária, mas ao lado, quase mesmo irmanado à mesma. A seu propósito talvez fosse bastante apropriado retomar aqui aquelas palavras de Alinor Azevedo comentadas no início deste texto. Belo e aparentemente simples, ou belo porque aparentemente simples, Missa do Galo é, de fato, um filme que parece ter nascido de um profundo respeito pela memória de Machado de Assis.
Luís
Alberto Rocha Melo é doutorando em Comunicação
pela UFF. Diretor do documentário 'O Galante rei da Boca' (2004)
e redator da revista eletrônica Contracampo. |
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