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Machado de Assis, plural Duas vias de acesso a O Cinema e Machado Brás Cubas: reflexões |
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O primeiro plano-imagem de Brás Cubas apresenta um esqueleto deitado com a cabeça à esquerda, ocupando a parte inferior do quadro em todo seu comprimento. Atrás, em pé, um técnico de som segura o fio de um microfone e o faz descer em direção à caveira, de tal modo, que ele penetra no orifício do olho. A seguir, o técnico encaminha o microfone em direção dos pés até os joelhos, fazendo com que ele esbarre nos ossos. O microfone volta em direção à caveira até entrar novamente no olho. A câmera gira de forma a que o técnico apareça de cabeça para baixo. Agora em posição invertida, o técnico repete a operação. Quando o microfone está de novo no olho, o técnico o retira e a câmera focaliza a caveira, que fica um tempo em campo. Corte. O plano dura cerca de dois minutos e vinte e sete segundos. Quando o microfone entra pela primeira vez no olho, ouvimos em off a palavra Necrofone. A seguir, na descida e na subida do microfone, ouvimos as batidas nos ossos. Na posição invertida, não ouvimos mais as batidas, mas uma canção popular, bastante leve e suave, que remete a um repertório musical recorrente na obra de Julio Bressane. À primeira vista, o plano não nos traz muito mais informações do que aquelas propostas pela descrição acima. Com certeza, não basta vê-lo para entendê-lo, uma outra operação é requerida. Digamo-la de imediato. Este plano significa, ou uma de suas significações é: memórias póstumas. A questão é: como chegar a esta informação, que não está contida no plano? A operação é dupla: uma proposição do realizador a que deverá corresponder uma reação do espectador. O realizador vai até um certo ponto, o espectador, estimulado pelo plano, fará por conta própria o resto do caminho. O trabalho do espectador consiste, essencialmente, em mobilizar um conhecimento que ele deve ter previamente. Se o espectador não tiver este conhecimento, a operação se interrompe. Se ele o tiver, a operação será deslanchada pelo estímulo provocado pela imagem. Ela é estimulante, pela junção curiosa, inesperada de dois elementos tão díspares: um esqueleto e um microfone valem “um guarda-chuva e uma mesa cirúrgica” (Lautréamont). A segunda parte do estímulo é que os elementos propostos pela imagem, aparentemente, não fazem sentido, há um obstáculo para atingir a informação, se informação houver. O plano é um enigma. Assim estimulado, o que o espectador mobilizará? O título, ou mais precisamente, a primeira parte do título do romance de Machado de Assis que este filme adapta para a tela. Assim se completa o letreiro apresentado pelo plano logo anterior ao que estudamos, que informa Brás Cubas, e não Memórias póstumas de Brás Cubas, título completo do romance. Façamos um primeiro comentário: este plano não informa, mas estimula para a mobilização de uma informação já de posse do espectador. Ele trabalha em função dessa informação prévia, ou seja, trabalha em função do que eu chamaria de um infratexto. O plano se torna significante na medida em que o infratexto existe, está em posse do espectador, e este consegue mobilizá-lo. O trabalho a partir de um infratexto é, sob várias modalidades, uma atitude recorrente na obra de Bressane, no decorrer de quase toda a sua carreira. O caráter enigmático deste plano, que, como um prólogo, precede as memórias, cria uma dificuldade de acesso à informação e seleciona o público. Isto já é a adaptação de Machado de Assis por Julio Bressane. De fato, o memorialista avisa, em notícia prévia “Ao leitor”, que o “melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou que as diz de um jeito obscuro e truncado”. Em termos de retórica, podemos dizer que Bressane privilegiou a inventio, diferentemente de André Klotzel, segundo adaptador do mesmo romance para a tela, que optou pela imitatio. Memórias póstumas (Klotzel, 2001) abre com o cadáver sobre o qual se fecha a tampa do caixão. Desenvolve-se a cena do enterro, num momento, na qual o defunto – que, a princípio, está no caixão – vem ao primeiro plano e dirige um monólogo ao público da sala. O texto, montado a partir do original de Machado de Assis, cita explicitamente o trocadilho autor defunto / defunto autor, omitido no filme de Bressane. Tudo bem, o espectador mobilizou memórias póstumas. Mas, e daí? Essa informação é conhecida por ampla maioria do público de cultura média, pois se trata de famoso romance do final do século XIX, além do mais, quem vai assistir a um filme de Bressane constitui um público culturalmente selecionado e, se isso não bastasse, a publicidade se encarrega de informar que o filme é uma adaptação deste romance. Portanto, não se mobilizou grande coisa, a mobilização foi fácil e rápida. Então, onde está a graça? O prazer consiste em descobrir, não o enigma em si (vimos que foi descoberto com facilidade), mas como ele foi construído, ou seja, como o diretor codificou o infratexto. A extensa duração do plano, que não é de se estranhar num filme de Bressane, aficionado por planos longos, nos deixa todo tempo para refletir a respeito. Além do tema fúnebre proposto pelo cadáver, identificamos de imediato a auto-reflexividade, tão ao gosto do cinema da “desconstrução” dos anos 60 e tão freqüente no cinema de Bressane. Mas o plano ultrapassa a mera referência metalingüística. Ao deixar penetrar o microfone na órbita ocular, aponta-se simultaneamente para a vista e o ouvido, o audiovisual, para o som, a palavra (o texto das memórias), que agora vira também imagem, se acopla à imagem. Isso aponta também para a conexão dos sentidos, vista e audição. Essa articulação microfone-órbita ocular vem acompanhada por um trocadilho: o neologismo necrofone, que relaciona o som à morte, é dito com uma entonação caricaturalmente lúgubre, acentuando a conotação irônica de toda essa construção. Ao descer, o necrofone, com suas batidinhas, nos deixa ouvir a voz do morto, isto é, as memórias póstumas. A voz do morto, não exatamente, pois mortos não falam. Mais correto seria dizer a voz que Bressane extrai do morto. O movimento de volta que faz o microfone dos joelhos à caveira, e sobretudo a rotação da câmera, que inverte a posição do técnico de som e do esqueleto, se por um lado pode ser aceito como a continuidade do que vínhamos vendo até então, por outro, nos traz uma novidade. A idéia do inverso, do reverso, da reversibilidade, o que amplia consideravelmente a construção percebida até agora. Machado de Assis, logo no primeiro capítulo do romance, se diverte ao praticar uma irônica reversão de palavras, quando seu memorialista afirma não ser “propriamente um autor defunto, mas um defunto autor”. Mas o plano de Bressane nos remete também a um universo cultural e filosófico distante do de Machado de Assis. A forma enigmática da expressão, o tema fúnebre (aliviado pela leveza da canção da segunda parte), a caveira que se destaca no final do plano como que vinda de uma vanitas do século XVII (Bressane retomará a natureza morta com uma caveira no seu São Jerônimo) nos introduzem num universo barroco. E a reversão provocada pelo giro de câmera chama a frase do filósofo barroco espanhol Baltasar Gracián em El Criticón: “les choses du monde se doivent regarder à l’envers pour les voir à l’endroit.” Podemos dizer que este plano de Bressane é um concepto, que não desmerece a agudeza celebrada por Gracián, o qual afirma que “la verdad, cuanto más dificultosa, es más agradable”. O prazer não nasce da descoberta da informação (vimos que esta é tênue, e há sonetos de Gôngora que não dizem mais do que: mulher desatando o cabelo), mas sim do modo ingenioso como o tropo foi elaborado. Devemos é “curtir” a elaboração inteligente do plano e a inteligência com que Bressane se relaciona com o texto de Machado de Assis. A respeito do estilo, Gracián escreve: “les oeuvres sont des corps vivants, avec une âme conceptuelle; tandis que celles des autres [que não têm estilo] sont des cadavres qui gisent dans des sépulcres de poussière et mangés par les vers” – (ou por saúvas, já que o plano seguinte ao do esqueleto mostra plantas infestadas por estas formigas que, por sua vez, proporciona a mobilização de outro infratexto – Macunaíma, de Mário de Andrade). É agradável relacionar esta frase de Gracián com o plano de Bressane. Não hesito em dizer que este plano é um pequeno poema barroco. Aplica-se com freqüência o adjetivo “barroco” ao cinema brasileiro dos anos 60-70. É abusivo. Apenas dois realizadores apresentam traços barrocos, se usarmos o adjetivo com algum rigor. São Glauber Rocha e Julio Bressane. Num determinado momento de Miramar, um plano apresenta duas taças focalizadas na vertical. Estão pousadas numa bandeja de prata, a qual encontra-se sobre um fundo alaranjado. Uma sombra forma-se sobre a bandeja e, pela borda superior do quadro, entra uma garrafa segurada por uma mão. A mão despeja champanhe na taça que está à nossa esquerda, a seguir na taça da direita. Ao ser despejado nas taças, o champanhe borbulha levemente. A mão retira-se. O borbulhar vai aos poucos diminuindo, a leve espuma se retrai, inicialmente na primeira taça, a seguir na outra, ficando a superfície do líquido lisa e transparente. O plano dura quase 39 segundos. O ponto de inserção deste plano no filme é na seqüência posterior à em que o pai entrega ao filho sua carta de alforria. Os pais, agora sem o filho, entregam-se a um festejo com champanhe e sexo, preparando desta forma o seu suicídio. Antes do plano acima descrito, vimos uma garrafa de champanhe dentro de um balde, vimos o pai erguer elegantemente um brinde (à esposa que não se encontra em campo). Vimos também um pilão de mesa, ornamento que sugere um passado rural, filmado num ângulo vertical, semelhante à tomada das duas taças. Posteriormente, veremos dois copos, com pés muito luminosos, filmados frontalmente. Uma mão, que entra pela esquerda, despeja neles um líquido escuro, que não borbulha (é o veneno com que o casal vai se matar). Cito estes diversos planos para sugerir que o plano das taças está inserido numa rede plástica e temática que se desenvolve no filme. Complemento agora a descrição do plano das taças. Quando a mão despeja o champanhe, ouvimos um ruído de mar, com destaque sonoro para uma onda que arrebenta no momento em que a garrafa serve a primeira taça, e uma segunda onda na segunda taça. Após a retirada da mão, como vimos, a espuma se retrai, o que dá início ao desenlace do plano: através do líquido transparente, vemos o fundo das taças, bem como seu pé. O fundo e o pé formam inequivocamente dois olhos. Neste momento, o plano audiovisual acaba de construir o nome do personagem principal e título do filme. Olhos + som de ondas = Mira Mar. Desta forma, o plano se relaciona com a “rede marítima” construída no decorrer do filme pelos muitos planos de mar. Faço aqui apenas uma referência a este circuito do mar. Vários planos desta série mostram ondas quebrando na praia, com a conseqüente formação de espuma. Alguns são tratados de trás para diante (esse tipo de tratamento encontra-se, sob diversas modalidades, em outros planos do filme, assim como em O Mandarim), ou seja, ao invés de se expandir, a onda, bem como a espuma, se retrai. O que relaciona o movimento da espuma do champanhe (tratado normalmente, de frente para trás) ao movimento da espuma das ondas. O que relaciona o Ver com o Mar. Um nexo pode ser estabelecido entre esse Ver + Mar e os primórdios do cinema brasileiro. Durante muito tempo, acreditou-se que a primeira filmagem realizada no Brasil datava de 1898, apresentando a entrada de um paquete na Baía da Guanabara. Pesquisas posteriores concluíram que já tinha havido uma filmagem em 1897, realizada por Cunha Sales, da qual foram recuperados onze fotogramas, que serviram de ponto de partida a Remanescências, belo filme de Carlos Adriano concluído em 1997, mesmo ano do Miramar de Bressane. Os onze fotogramas representam uma onda arrebentando num rochedo. Ora, o primeiro plano-imagem (com duração um pouco superior a cinquenta segundos) de Miramar é justamente um plano de mar, com ondas se quebrando em rochedos. Miramar / Mira Mar tem outras fontes, explicitamente expostas no filme. Uma delas, cinematográfica, é uma sala de cinema, o cinema Miramar, hoje possivelmente fechada, da qual o filme mostra a fachada. A outra fonte é literária. Mas antes de explicitá-la claramente Bressane constrói um circuito particularmente interessante. Após o plano do veneno, a que aludi acima, entra uma paisagem marítima brumosa. Depois da morte dos pais, voltamos a uma paisagem semelhante, mas, desta vez, clara e luminosa, seguida por um plano mais fechado de ondas. O plano seguinte apresenta uma mão segurando um velho livro, cujo título podemos ler: Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, cuja adaptação cinematográfica Bressane realizou mais de dez anos antes do Miramar. O espectador, de posse de um conhecimento mínimo de literatura brasileira, mobiliza imediatamente o infratexto: este título espelha o título simétrico do livro de Oswald de Andrade: Memórias sentimentais de João Miramar (posteriormente a capa deste último livro será claramente apresentada, o que me parece enfraquecer o trabalho do espectador feito a partir do livro de Machado de Assis). O jovem ator que interpreta o papel de Miramar tem uma característica facial: seus olhos escuros destacam-se no rosto, e nada nos impede de imaginar que tal característica tenha sido determinante na escolha do ator. Seria provavelmente desatino meu relacionar os olhos das taças com os do ator, caso a única referência que João Miramar, personagem do romance, faz a seu próprio corpo não fosse “os meus olhos morenos”. Um fragmento do filme trata dos olhos do rapaz. Num primeiro plano frontal, olhando supostamente em direção ao mar, ele sente algum incômodo na vista, e esfrega fortemente os olhos. Antes deste plano, o personagem recebeu um exemplar das Reflexões de um cineasta, de Eisenstein (o que justifica a presença de fotografias da cultura inca neste fragmento); vimos alguns planos, realizados na residência dos pais, “mal” filmados (neles aparecem uma claquete, e o próprio diretor do filme). O plano em que ele esfrega os olhos é seguido por diversos outros, tapados por uma mão nos impedindo de ver o que representam. Estamos, neste momento do filme, numa situação de não-ver ou de ver mal. Voltamos ao primeiro plano do rapaz: ele pára de esfregar os olhos, abre-os bem grandes: ele conquistou seus olhos, o ver, conquistou o cinema. Mais adiante, durante uma aula de literatura dada por uma professora, um plano apresentará um destaque dos dois olhos do rapaz, seguido por um plano dos seios nus (supostamente da professora – lembremos que Miramar é um “filme de formação”, como se diz “romance de formação”, formação afetiva, sexual, filosófica e cinematográfica). A tomada do jovem esfregando os olhos, dividida em dois planos pela montagem, pode ser considerada como a retomada da parte final do plano das taças. Em ambos os casos, passamos de olhos que não se vêem e não vêem a olhos que vêem e se vêem. O plano das taças condensa, com rigor e notável economia de meios, o essencial do processo de formação em torno do qual se constrói o filme. Numa determinada cena, Bressane trabalha a relação Brás Cubas / João Miramar. Trata-se de um diálogo em que um professor aponta para o que me parece ser uma das bases da poética de Bressane: “Mais importante que o conceito de nação, é o conceito de noção. Mais do que o nacional, é o nocional que a luz irradia. O que existe entre João Miramar e Brás Cubas é um acoplamento... nocional”. Podemos dizer que as minhas reflexões, deslanchadas pela linguagem dos filmes, em torno das taças, como no texto anterior a partir do esqueleto, trabalham “acoplamentos nocionais”. Em tempo: Miramar nada tem a ver com Miramax.
Jean-Claude Bernardet é professor de cinema, escritor e roteirista. Texto originalmente publicado na Revista de Cinema,
número 34 |
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