Machado de Assis no
reino das adaptações

Rafael de Luna Freire

Machado de Assis, plural
Luís Alberto Rocha Melo

Duas vias de acesso a
Machado, e um desvio

Francisco Roberto Papaterra Limongi Mariutti

O Cinema e Machado
Hernani Heffner

Brás Cubas: reflexões
sobre dois planos

Jean-Claude Bernardet


O CINEMA E MACHADO
Hernani Heffner

Pedem-me que escreva sobre “Machado de Assis e a invenção da Vida Moderna” em meio às comemorações do seu centenário de morte. Tema em princípio fascinante e atual – da moda para ser mais preciso –, ainda que suscitado por motivo tão pouco nobre. Sobre este aspecto, o próprio Machado talvez colocasse a vaidade de lado e gostasse da ironia, escrevendo uma crônica sobre a transformação da morte em commodity cultural. Ou não, ignorando-a como algo distante do seu quilate e irrelevante em meio à enxurrada de efemérides esquisitas do mundo contemporâneo. De qualquer modo, tem-se um pretexto para conhecer a opinião de uma mente brilhante sobre seu tempo e as transformações do cotidiano que se operaram nele. Mas isso já foi feito por gente mais talentosa e conhecedora do que eu. Recomendo particularmente o texto de Adriana Sardinha Ribeiro: Crônica sobre trilhos, o bonde carioca na obra de Machado de Assis e Olavo Bilac (1).

Para continuar com a empreitada e garantir a paga, se poderia então criar uma nova e artificial polêmica, tão ao gosto do bruxo do Cosme Velho. Bachelard disse certa vez que o gosto da modernidade por opiniões era tão risível quanto nefasto (2). A voracidade com que impressões são transformadas em conceitos explicaria os fascismos cotidianos e a boçalidade reinante (em termos machadianos, para sermos elegantes). O alvo óbvio na atualidade seriam os livros de auto-ajuda e os cadernos de cultura (de preferência, em ordem de atentado ao pensamento), mas, no passado, tal prática esteve associada à crônica jornalística. A machadiana distinguiu-se pela laboriosa associação da ocorrência prosaica à reflexão filosófica. A introdução do bonde (o elétrico, sobretudo) certamente trouxe “balas de estalo” – movimento, velocidade, choque –, em termos da vivência mental (e física) do cidadão fluminense da virada para o século XX, como querem os seguidores da obra de Simmel (3). Para o autor de Dom Casmurro, importava mais o caráter democrático desse tipo de transporte, de permeio com os inconvenientes da intromissão não admitida na vida alheia pelo passageiro ao lado. Em seu pensamento niilista, as condições advindas do andar de bonde se auto-anulavam, produzindo um estado não de choque, mas de desencanto. Ao vencedor, as batatas.

O silogismo seria denunciado por Bachelard, pois o bonde foi apenas um estágio no desenho de uma nova sociedade de classes. Logo os abastados passariam a andar de automóvel, abandonando o transporte coletivo e democrático ao povo... Estado mental por estado mental, o descortinado por Lima Barreto sempre pareceu mais crítico e adequado ao contexto da República Velha. Entusiasmo por entusiasmo, João do Rio, Olavo Bilac e Artur Azevedo, entre outros, pareceram igualmente mais sensíveis ao cronos. Os três perceberam no cinematógrafo, por exemplo, a perfeita tradução desses tempos modernos: inconseqüentes, passageiros, descartáveis, como notícia de jornal que já está velha ao fim do dia. A menção ao cinema não é casual – aliás, este texto deveria centrar-se nesse universo, prioritariamente –, dado que as imagens em movimento ganhariam o status de livro do mundo para os analfabetos. No entanto, caberia apenas ao esquecido Figueiredo de Pimentel, o Binóculo, se interessar especificamente pelo cinema como novidade, documentando os novos rituais sociais engendrados no seu entorno (4). A crônica sempre pareceu se abrir a essa displicência mais ampla do pensamento, para um lado ou para outro.

Todos, incluindo Machado, ocuparam, principalmente, as páginas do jornal Gazeta de Notícias, veículo por excelência na captação/confecção desse admirável mundo novo entre nós. Até que ponto as impressões predominaram na Belle Époque carioca, pode se tornar irrelevante, se o problema for considerado por outro ângulo ou a partir de uma outra matriz de reflexão. Antônio Cândido não só apreciava a crônica como alta literatura, como a defendia com bravura como relato fugaz e mundano (5). Isto conservaria o caráter vivido da experiência imediata do mundo, conferindo-lhe uma espécie de selo de autenticidade em sua carnalidade exposta. A impressão diria muito a respeito da reação dos seres em relação ao mundo em transformação. Diria não dos nossos choques e, sim, dos nossos valores eventualmente ultrajados. É sabido que Machado de Assis tratou tudo com fina e ferina ironia. É menos comentado que sempre considerou algo bem menor as atrações de feira, os espetáculos de lazer eventual, os maquinismos destinados à mera distração, espaço onde, em princípio, deveria se encaixar o cinema. Tais experiências – ele parecia se referir a elas mais como teratologias – estavam destinadas a enganar o vulgo e a revelar seus baixos instintos. Na verdade, a caracterizar o povo como crédulo em excesso, para além da desprezível ignorância habitual.

O cinema não se tornou uma novidade passageira, mas Machado assim parece tê-lo tratado até o fim da vida. Diga-se a seu favor que sua carreira de cronista se encerrou antes que as imagens em movimento tivessem uma presença mais destacada na vida da cidade: em 1897, de forma mais cotidiana, e, por volta de 1904, de forma mais definitiva, quando Carolina morreu. Mesmo assim, como artista sensível e como bom leitor, sabia que a novidade tinha vindo para ficar. Assim, seu interesse episódico e lateral pelo cinema não parece caracterizar só o desprezo pelas engenhocas que constituíam o tímido panis et circenses local. Como sugere Emmanuelle Toulet (6) para alguns grandes escritores europeus, como Máximo Gorki, o brasileiro talvez desconfiasse de um logro ainda maior e de uma ameaça à hegemonia da literatura no comércio das idéias e das emoções. O primeiro, de um lado, pelas figuras envolvidas com a exibição cinematográfica, particularmente José Roberto Cunha Sales e Paschoal Segreto, criadores da primeira sala de exibição fixa do país. O segundo, do outro, pelo impacto da imagem em movimento como expressão de verdade do mundo, associada justamente a esta origem pouco nobre.

Cunha Sales o interessou muito: como o mais destacado bicheiro do fim do século; pelas reações violentas que ensejava (o próprio prefeito da capital federal mandou explodir um de seus negócios escusos na Lapa, matando vários visitantes/apostadores); pela mirabolante imaginação trambiqueira de falso médico e advogado. O negócio do pernambucano era iludir o zé-povinho e talvez espantasse o quanto este se deixava enganar na época. Sua obra maior, o Pantheon Ceroplástico, uma espécie de museu de cera, era só uma fachada para o jogo ilegal. Mas não havia logros reais. A farsa era conhecida e compactuada pela população. Isto provavelmente doía ao cronista. Segreto, igualmente bicheiro e comerciante ilegal de bebidas, ópio e mulheres, talvez o tenha assustado mais, pela facilidade com que se aproximou dos homens no poder e pela sugestão propagandística de que o cinema era mais real do que a própria realidade. Uma outra forma de farsa, só que agora como que incorporada ao ser pela sua credulidade diante do que acontecia na tela. Não se compactua mais, apenas acredita-se, e, o que era o pior para o homem das letras e do pensamento, sem muita reflexão. O analfabeto justificava-se diante de sua inacessibilidade ao jornal, e talvez por sua reverência diante das imagens em movimento. Mas não os homens de terno ou fraque e as senhoras de chapéu e echarpe que freqüentavam as caras sessões de cinema dos primeiros tempos.

Um conhecedor de Shakespeare como Machado sabia que o cinema não alteraria significativamente o sentido da vida. O cinema como forma de expressão talvez tivesse acuado um pouco o escritor em seu temores não revelados, mas não a ponto de empanar seus vaticínios. Daí talvez seu desprezo displicente. Uma atitude cobrada por Paulo Emílio Sales Gomes em sua crítica aos intelectuais brasileiros por ignorarem o cinema brasileiro por décadas e décadas, desde o começo (7). Ainda mais, quando se tratava de um grande nome e esse autor tinha propugnado uma arte de caráter nacional, interessada justamente em nossas reações diante do que nos cercava. O sentimento nacional machadiano encontraria um bom terreno na arte do cinema, mas ele não se animou a estimulá-lo. Como de resto os demais, por um bom tempo.

 

1. Acessível em http://paginas.terra.com.br/arte/dubitoergosum/
a105.htm

2. BACHELARD, Gaston. A Formação do Espírito Científico. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.

3. Georg Simmel ressuscitou na vida acadêmica brasileira com o lançamento do livro O cinema e a invenção da vida moderna, organizado por Leo Charney e Vanessa R. Schwartz, embora seu texto chave já tivesse sido traduzido entre nós há muito tempo. V SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida moderna. IN: VELHO, Otávio Guilherme (org). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.

4. V. SOUSA, José Inácio Melo. Imagens do passado. São Paulo: Senac, 2004.

5. CÂNDIDO, Antônio. A vida ao rés-do-chão. IN: Para gostar de ler. V. 5. São Paulo: Ática, 1980.

6. TOULET, Emmanuelle. Cinema, invenção do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000.

7. GOMES, Paulo Emílio Sales. Trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1978.

 

Hernani Heffner é pesquisador.